#44 A tua história com o dinheiro
A lot of people psychologically put themselves in jail, just glancing at their tax forms—David Allen
Em minha casa sempre foi a minha mãe que tratou das contas. Era ela que tratava de guardar faturas em capas, de insistir connosco para pedirmos faturas na escola, e também era ela que preenchia o IRS de todos — o dela, do meu pai, e nós os três incluídos.
Não me lembro de ver a minha mãe a fazer o IRS, mas lembro-me da mesa cheia de papéis, e de a ver zangada porque o meu pai não tinha guardado a fatura do dentista, ou eu não tinha pedido fatura dos manuais escolares.
O que me lembro é de a ouvir queixar-se. Sempre me pareceu — e certamente era, naquela altura — uma tarefa monumental e temível.
Da parte que toca à minha mãe, imagino que, preencher o IRS em papel, não se aproximava, nem de perto nem de longe, de fazer um doutoramento numa Era pré-internet, quando se pedia artigos aos autores por correio. Ufa.
Quando estava no secundário tinha uma semanada de 20€. Nunca poupei. Chegava para ir ao café, um ocasional almoço, e a eventual ida ao shopping. Os meus irmãos receberam o mesmo e pouparam quase tudo. Fomos educados da mesma maneira no que toca a dinheiro, mas os resultados eram diferentes. Eu gostava de comprar brincos e comer gelados com as minhas amigas.
Na universidade, tinha uma mesada de 300€ mais a minha parte da renda, que foi sempre 150€ nas várias casas onde morei (outros tempos). Chegava, mas a conta ia sempre a zero. Poupar nunca esteve nos meus planos. Nunca pensei em impostos nem no mundo real. Estava confortável com a minha versão demo do mundo.
Se tinha sido diferente se esta febre das finanças pessoais já tivesse tomado conta das redes sociais? Estou contente pelos gelados que comi, mas não tanto pelos brincos que comprei.
Comecei a pensar a longo prazo aos 23, quando fui abrir um PPR na Caixa para sossegar a ansiedade, mas só o fiz com consciência já perto dos 30. Até lá, fui andando e vendo.
O que sentimos por impostos, finanças e dinheiro, é muito influenciado pela maneira como o dinheiro era visto pelos adultos à nossa volta. Pais, professores, amigos. Poupavam? Gastavam muito? Tinham dívidas? Falavam sobre dinheiro? Quem era responsável pelas contas lá em casa?
No meu caso, no privilégio de não ter realmente me preocupar com dinheiro durante muito tempo, só confrontei muitas dessas crenças e fragilidades quando comecei a fazer os primeiros orçamentos, e começar a pagar os primeiros impostos, e tudo parecer rígido, ilógico e desconhecido. Sei que a segurança que senti desde sempre me intimidou a fazer preços mais justos no início, porque me foi incutida a ideia de que “o mais importante não é o dinheiro”. Também sei que, trabalhar numa área criativa (artística, como se diria antigamente), também me trouxe um preconceito base de que interessava mais a realização pessoal e gostar do que faço. Há muito para desenrolar quando entramos por aqui.
Estamos nos últimos 10 dias para entregar o IRS. Se ainda não preencheram, não sejam maus para vocês e não adiem mais. O que tens de lá pôr, no fim de contas, é sobre o que conheces melhor do que ninguém — sobre ti.
Até breve,
Sofia
Para seguir
The Creative Independent
Faz parte da família de recursos do A partir daqui, o meu novo podcast. Entrevistas (muitas, muitas entrevistas), com designers, ilustradores, músicos e outros profissionais criativos, com a particularidade de tocarem sempre nos pontos mais sensíveis — gerar dinheiro para viver, a ansiedade de viver da ideia e da comparação constante, como ter tempo para fazer o trabalho que importa (e queremos). Sinto sempre companhia ao cruzar-me com as publicações deles no instagram.




Da internet
Primarium
Como se parece a caligrafia primária noutras partes do mundo? O Primarium é um repositório de materiais para aprender a escrever com 40 países e 68 bases diferentes. É que eu nem imaginei que pudessem existir tantos. Inclui Portugal, em colaboração com os tipógrafos Joana Correia e Paulo Heitlinger.
Ler/ver/ouvir
Esta semana, o episódio 75 do Fazer Preços e Assim é dedicado ao IRS. Não é denso, prometo. São 12 minutos de introdução e beabá do imposto mais importante (e clássico) que afeta as nossas vidas.
The Terrible Costs of a Phone-Based Childhood é um artigo que já li há umas semanas e ia jurar que o tinha partilhado na newsletter, mas os temas devem ter-me trocado as voltas. Uma exposição tão concreta como assustadora de como os telefones estão a minar o crescimento e a formação individual dos mais novos. Vale muito a pena a leitura, sobretudo se conviverem com crianças e adolescentes.
To solve problems caused by sitting, learn to squat é um texto antigo, mas vim dar aqui porque sigo a
no Substack. Fez tanto sentido para mim, que olho para o meu filho a brincar, perfeitamente confortável na posição de agachamento, e tenho uma inveja terrível porque a minha mobilidade de tornozelos já não me deixa chamar-lhe “posição de conforto”:Entretanto, no Luscofia
Para mais contexto sobre o IRS, também do Fazer Preços e Assim, recomendo o episódio 73 e o episódio 74 sobre o Regime Simplificado, em especial o 74 que explica como funciona a nossa dedução de despesas profissionais no IRS.
No A partir daqui conversei com a Flávia Pedrosa no episódio 8, que insiste em dizer que o seu percurso profissional está cheio de coincidências, mas que na verdade é um exemplo do que acontece quando se começa a trabalhar cedo, sem medo, e se vai seguindo de oportunidade em oportunidade, até, este ano, fundar a sua agência.
Também conversei com a Inês Gomes no episódio 9, que só esteve um ano em design antes de mudar para arquitectura na FAUP. Mais recentemente, a Inês esteve envolvida na criação do Sintarq, o sindicato dos trabalhadores em arquitectura, por isso é natural que a nossa conversa tenha andado muito sobre condições de trabalho e os paralelismos entre a esfera da arquitectura e a do design. Uma conversa muito franca.
Dei uma masterclass online para as artistas do programa do Artistas Hub sobre 11 pontos importantes para a organização financeira. Obrigada, Joana, pelo convite!
Estive em Lisboa na FAUL, a dar um seminário aos alunos de design que estão a terminar agora o curso (e outros que se juntaram também). Foi uma apresentação sobre mercado de trabalho, preços, como funciona uma equipa de design, que tipos de formalização de negócio existem, e conselhos essenciais que adorava ter recebido. Valeu muito a pena a viagem.
Revi-me muito neste texto. Também vivi muito na onda da "chapa ganha, chapa gasta" sem qualquer tipo de literacia financeira. Só comecei a fazer um PPR aos 36 anos... Muito graças ao podcast do Pedro Andersson. Fui aprendendo e, à medida que percebi certas coisas, senti muito arrependimento. No meu caso não foram brincos, mas a carapuça serviu-me.