#49 Elenco secundário
I’ve often noticed that we are not able to look at what we have in front of us, unless it’s inside a frame.–Abbas Kiarostami
De regresso, depois das férias, e com vontade de trabalhar mais, a semana passada fui fazer um trabalho que já não fazia há mais de um ano: assistência de sala no Teatro de Vila Real.
Desde 2017 que estamos (nós, empresa) a cargo da gestão dos assistentes de sala no teatro municipal. Entre 2017 e 2020 eu própria fiz várias centenas de horas de apoio a espectáculos. Um assistente de sala, para saberem do que estou a falar, é uma daquelas pessoas, normalmente vestida de preto, que ajuda as pessoas a sentarem-se no início do espetáculo, toma conta do público e da hospitalidade, e no fim encaminha as pessoas para a saída.
Na semana passada foi um espetáculo de ópera e, portanto, um daqueles em que o público se porta muito bem — sem telemóveis, sem pés em cima das cadeiras, sem espectadores barulhentos e a chegarem atrasados (só alguns vá, já se sabe). Nesses casos, o trabalho é mais estar do que outra coisa; um pouco como o trabalho de segurança — se tudo correr bem, estar presente é o trabalho.
Não é um trabalho qualificado, mas não devemos subestimar a importância (e a dificuldade) dos trabalhos em hospitalidade. As pessoas, na sua forma de clientes, espectadores, hóspedes, turistas, são seres particulares, nem sempre fáceis, com expectativas individuais e, não raramente, a postura de personagem principal. Nós – na pele de assistentes de sala, recepcionistas, hosts, empregados de mesa e outros – somos o elenco secundário.
Por isso não me espanta notar alguns dos pontos que partilho com vocês nesta edição:
Há uma condição de invisibilidade neste elenco secundário. É uma experiência que nos ensina muito sobre os outros e devemos ter o cuidado de não interiorizarmos essa invisibilidade como uma característica nossa. Não é um problema pessoal, mas uma percepção de classe.
Também sinto que às vezes tem a ver com expectativa e com o contexto que esperamos das pessoas que conhecemos — alguém habituado a cruzar-se comigo noutro ambiente, sobretudo profissional, fica surpreendido e nem sempre repara que sou neste contexto.
Os contextos são importantes, ajudam a definir a nossa identidade e as regras morais às quais obedecemos nas nossas escolhas profissionais. Já tivemos um assistente de sala que não voltou porque era desconfortável encontrar tanta gente que conhecia (é uma cidade pequena, afinal de contas). Também já tivemos um que ficou desmoralizado depois de ouvir “mas tu tiraste um curso de X, porque é que estás aqui?”. Também já houve um caso de alguém que passou a trabalhar na câmara, numa posição melhor, e não ia ficar bem ser assistente de sala ao mesmo tempo – o que se compreende, porque seria receber do empregador via prestação de serviços através de uma empresa. Sinto esse julgamento às vezes quando estou neste elenco secundário: é um olhar ao mesmo tempo confuso (porque não parece “haver necessidade” de eu estar ali) e decepcionado (porque a sua versão de mim não combina com aquele quadro aparente de “falta de ambição”).
Quando trabalhava como recepcionista de um turismo rural durante o verão, nos idos anos de 2015 e 2016, também ouvia coisas semelhantes, mas de desconhecidos: turistas que me diziam coisas “mas o teu inglês é tão bom, porque é que estás aqui?” ou “não tens vontade de procurar outra coisas?”. É engraçado como este “elenco secundário” é tão facilmente visto como uma massa homogénea de origem humilde e sem ambições pessoais. Uma tábua rasa, um papel curto e esporádico, sem profundidade ou amplitude.
Podia fazer melhor uso do meu tempo? Em termos de valor/hora, sim, podia, mas há mais ganhos além desse. O plano será preencher eventuais furos no horário e manter alguma presença, até porque queremos continuar a prestar um bom serviço e as equipas não se podem sentir abandonadas. E depois, dei por mim a aperceber-me de que há muito, muito, muito tempo não tinha uma hora e meia sem olhar para nenhum ecrã, sem falar com ninguém, só a ver um espetáculo, a estar atenta ao ambiente, e a pensar na vida.
Uma reflexão diferente, para alargar o debate do “regresso ao trabalho” que se enrola sempre em setembro.
Até breve,
Sofia
Para seguir
Matilde Horta
O trabalho da Matilde lembra-me uma das expressões favoritas do meu professor de ilustração da FBAUP: micro-narrativas. À primeira vista é uma flor, ou uma mancha de cor, mas depois conta-nos qualquer coisa sobre o que aconteceu antes, o que vai acontecer depois, como se sente, e porque será?, e é por despertar curiosidade que se torna tão rico.
A Matilde mudou-se há algum tempo para o campo. Essa mudança motivou agora a criação de uma newsletter sobre as graças e desgraças da vida criativa independente fora dos grandes centros. O primeiro número ainda não saiu, mas podem subscrever aqui.
Da internet
Lola’s Club
Um clube de não-procrastinação que reúne mensalmente em Lisboa. Foi-me dado a conhecer por uma seguidora (obrigada, Fernanda! <3) e, embora não consiga juntar-me à próxima reunião, fiquei com vontade que fosse aqui ao lado.
Ler/ver/ouvir
Maria Antonieta: O retrato de uma mulher comum. Pois é, uma coisa que talvez não saibam sobre mim é que gosto de uma boa biografia de personagens históricas femininas. Depois da rainha D. Maria I (que não admira que tenha ficado senil), cruzei-me com a da Maria Antonieta, do Stefan Zweig. Nunca tinha lido nenhuma dele e faz mesmo diferença ser um biógrafo a sério. Estou a ler a versão portuguesa e é gratuita com o Kobo Plus.
Encontrei este artigo por causa do estudo que estou a terminar para o doutoramento. Faz-me pensar que devia trazer mais deste conteúdo para aqui – investigação sobre indústrias criativas, freelancing, e temas satélites. Este é sobre como as políticas de incentivo das indústrias criativas são, às vezes, um fenómeno oco e que não tem em consideração (e até exacerba) os problemas laborais que temos neste mercado. ‘A very complicated version of freedom’: Conditions and experiences of creative labour in three cultural industries (link para o PDF sublinhado por mim, com download a partir da conta da universidade, uma vez que isto da investigação tem estas barreiras de acesso, não é?).
Signs It's Time to Switch Bookkeepers. Há uns tempos fiz o post no instagram sobre o mesmo assunto, mas, chegando setembro e com ele a nossa predisposição para mudanças, é um bom tema para deixar desta vez. Sou fã do Hell Yeah Bookkeeping (já partilhei numa edição passada), é um dos projetos que me inspira-me a continuar a cruzar finanças e trabalho criativo.